18.9.05

Opinião

Recebi o texto abaixo de uma amiga, li, re-li e então guardei num canto para depois voltar a ele. Certas coisas precisam ser ponderadas, principalmente quando se trata de algo que faz parte do nosso alicerce. Já escrevi anteriormente sobre amor e liberdade, claro que dentro de uma perspectiva personalíssima. Agora estou diante de um texto cuja afirmação é de que amor separa e o ódio une, isto numa analise perfunctória. Então vamos pensar sobre isto.

O que é o amor? O que é a paixão? O que é a amizade? Creio que estes três sentimentos estejam presentes num relacionamento bem sucedido, e por bem sucedido entendo um relacionamento pleno, onde cada um é feliz e se satisfaz com a felicidade do outro, onde ambos se alimentam das conquistas e prazeres individuais, onde a cumplicidade é a marca da relação, e principalmente ambos mantêm a sua personalidade, não há anulação.

Penso que a paixão é fugaz, todavia intensa é como o calor da labareda, é fogo que consome aquilo que a nutre. Uma paixão eterna devoraria o apaixonado, um exemplo disto está nos poetas românticos como Castro Alves que definhou numa tuberculose movido por uma paixão dilacerante e exacerbado por sua musa.

O amor é o sentimento que mais se aproxima à imagem de Deus, ele é perene, eterno em sua forma, não cabe em descrições e limitações intelectuais, mas se for preciso defini-lo é mister pensar no infinito, olhar para o céu numa noite de escuridão e observar as estrelas e então perceber como somos pequenos diante de todo o universo. O amor é paz, é felicidade em dar, é tolerância, paciência, é antes de tudo cumplicidade e companheirismo. O amor é desejo, prazer e momentos de paixão. O amor não prende, mas cativa, não proíbe, liberta. O amor é tranqüilo e sereno como um rio de águas claras cujo rumo pode até ser desconhecido, porém nunca incerto.

A amizade é a mais conhecida e praticada forma de amor, ela não tem conotações sexuais, econômicas ou sociais. Amigos o são por pura sintonia, não é improvável ver uma verdadeira amizade entre pessoas de classes sociais diferentes, sexo oposto e até mesmo opção sexual diferentes. São amigos, jovens de velhos, ricos de pobres, homens de mulheres, enfim a amizade supera a tudo e se impõe onde muitas vezes não seria razoável existir. Os amigos, como os amantes se satisfazem no sucesso alheio e por ele torcem, são companheiros nos momentos difíceis e muitas vezes a única esperança. Os amigos são verdadeiros e quando necessário falam verdades dolorosas e por isso mesmo são amigos.

Então penso que uma relação sólida não pode ser alimentada por ódio, não creio que pessoas permaneçam juntas para torturarem, consumindo umas as outras pelo ódio alimentando a infelicidade alheia. Não! Isto não é racional, dizer isto de uma relação é desacreditar na capacidade humana de ser sociável, viver em sociedade, em grupos, em família não é viver num inferno de limitações, não é estar preso. A liberdade está no exercício do livre arbítrio, de poder partir a qualquer momento, mas ainda assim ficar. De nutrir-se de sonhos a dois, de projetos que caminhem na mesma direção. Creio que uma relação acaba não quando acaba o amor, mas quando cessam os objetivos comuns, quando cada um segue numa direção diferente, e isto nada tem a ver com amor ou ódio.

Por fim prefiro um pássaro livre voando diante de mim a tê-lo preso numa gaiola ao meu alcance, posso usufruir o prazer de seu canto indo até ele na floresta, no parque, onde quer que ele esteja, não preciso aprisioná-lo para ouvir o seu canto. È uma questão de posicionamento diante da vida, creio que um relacionamento pode ser pleno e satisfatório desde que haja amor e cumplicidade, e é claro que, além disso, um pouco de paixão para acender a chama, nunca o ódio pode ser a amálgama que une um casal.

Então penso que o casamento é a decisão de duas pessoas em caminharem juntas numa mesma estrada, buscando chegar ao mesmo lugar. Ainda que cada um caminhe com seus próprios pés e tenha o seu próprio ritmo, e possam em algum momento se distanciar, mas nunca perdendo um ao outro de vista. Algumas vezes será necessário parar e esperar pelo outro, ou então acelerar para alcançar o que se distanciou, mas é imprescindível haver sempre reciprocidade de atitudes e objetivos, do contrário torna-se impossível à caminhada.
Quando o casamento vira guerra

Rubem Alves

Um homem tinha longas conversas com o diabo. Cavalheiro de voz mansa, bem vestido, em nada se parece com o que dizem dele: rabo, chifres, patas de bode e cheiro de enxofre. Um dia ele ficou sabendo o motivo exato do desentendimento definitivo entre Deus e o diabo:
Todo mundo sabe que, no início, eu era a mão direita de Deus. Estávamos de acordo em tudo. Ele mandava, eu fazia. Foi por causa do casamento que nos separamos. Até então trabalhávamos juntos. Quando Deus disse que não era bom que o homem estivesse só, e melhor seria que ele tivesse uma mulher, eu concordei. Quando Deus disse que essa união não deveria ser sem fim, até a morte, eu aplaudi. Mas aí apareceu o pomo da discórdia. Para colar o homem na mulher, Deus foi buscar uma bisnaguinha de amor. Protestei. Argumentei: "Senhor! Amor é coisa muito fraca, de duração efêmera! Quem é colado com amor logo se separa!"

E o diabo continuou explicando: o amor é chama tênue, fogo de palha. Não pode ser imortal. No começo, aquele entusiasmo. Mas logo se apaga. Chama de vela, fraquinha, que se vai com qualquer ventinho... Amor é bibelô de louça. Todos os amantes sabem disso, mesmo os mais apaixonados. E não é por isso que sentem ciúmes? Ciúme é a consciência dolorosa de que o objeto amado não é posse: ele pode voar a qualquer momento. Por isso o amor é doloroso, cheio de incertezas. Discreto tocar de dedos, suave encontro de olhares: coisa deliciosa, sem dúvida. E é por isso mesmo, por ser tão discreto, por ser tão suave, que o amor se recusa a segurar. Amar é tem um pássaro pousado no dedo. Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que, a qualquer momento, ele pode voar.

Como construir uma união duradoura com uma cola tão fraquinha? Por isso os casais se separam, por causa do amor, pela ilusão de outro amor. Qualquer tolo sabe que o pássaro só fica se estiver na gaiola. O amor é cola fraca para produzir um casamento duradouro porque no amor vive o maior inimigo da estabilidade: a liberdade. É preciso que o pássaro aprenda que é inútil bater as asas. Um casamento duradouro é aquele em que o homem e a mulher perderam as ilusões do amor. Foi aí que nos separamos, ele continuou. Não porque discordássemos que o casamento deveria ser eterno. É isso o que eu quero. Nos separamos porque não estávamos de acordo sobre o que é que junta um homem e uma mulher, eternamente. Deus é um romântico. Eu sou um realista.

Perplexo, o homem perguntou: Qual foi sua proposta? Que cola deveria ser usada? O diabo sorriu confiante, e respondeu: - O ódio. Enganam-se aqueles que dizem que o ódio separa. A verdade é que o ódio junta as pessoas. Como disse um jagunço do Guimarães Rosa, quem odeia o outro, leva o outro para a cama. Diferente do fogo da vela, o fogo do ódio é como um vulcão. Não se apaga nunca. Por fora parece adormecido. No fundo as chamas crepitam. A diferença entre os dois? O amor, por causa da liberdade, abre a mão e deixa o outro ir. No amor existe a permanente possibilidade de separação. Mas o ódio segura. Não tenha dúvidas. Os casamentos mais sólidos são baseados no ódio. E sabe por que o ódio não deixa ir? Porque ele não suporta a fantasia do outro, voando livre, feliz. O ódio constrói gaiolas, e ali dentro ficam os dois, moendo-se mutuamente como máquina de moer carne que gira sem parar, cada um se nutrindo da infelicidade do outro. As pessoas ficam juntas para se torturarem. Não menospreze o poder do sadismo. Ah! A suprema felicidade de fazer o outro infeliz!