7.9.05

Rasgando a veia...

(Entardecer de uma vida...)

Hoje resolvi falar de algo que está há muito tempo guardado em meu coração, nunca abordei este assunto porque sei que minha família freqüenta este lugar, e não queria que eles fossem atingidos por minhas impressões, mas é chegada a hora de exorcizar os fantasmas.

O que dizer de meu irmão Junior senão que ele era muitos num só, foi o filho amado, querido do coração de nossa mãe. O irmão e amigo do peito do meu mano Edson, eles eram inseparáveis, melhores amigos. O irmão querido da mana Vera, ele sempre foi solidário a ela. O irmão amado da mana Mônica, eles tinham uma boa sintonia. Para mim ele foi herói e monstro.

Lembro com saudade daquele tempo em que eu era muito pequeno para perceber o mundo a minha volta, anos 60, meu pai ainda era vivo. Naquele tempo eu era tido como um menino preguiçoso que não aprendia a ler, eu ainda não tinha seis anos, minha mãe sempre ameaçava me colocar no reforço com uma fula de tal que alfabetizou meus irmãos. Recordo do olhar de terror da mana Vera ao ouvir tal promessa. Algo me dizia que essa educadora não seria legal comigo. Um dia minha mãe cansou de ameaçar e me enviou ao suplício.

O lugar era agradável, uma velha casa no bairro do Recife, no centro. A casa era arejada e havia uma atmosfera familiar, plantas espalhadas pela sala e ao fundo um belo jardim, e gatos, muitos gatos, mas não só eles, tinham também periquito, papagaio, cachorro, cágado, e um aquário cheio de lindos peixinhos. Logo que cheguei ri em silêncio do medo dos meus irmãos, pensei comigo mesmo, vou adorar aprender a ler com essa professora.

Foi quando vindo da cozinha surge diante de meus olhos aquela mulher gorda, cujos seios saltavam para fora do vestido que lhe apertava as carnes volumosas. Sobre sua cabeça havia algo incompreensível, um coco de pelo menos uns vinte centímetros, imaginei que ela usaria aquele cabelo para amarrar suas vítimas, na mão esquerda sustentava um leque, que ela agitava freneticamente, na direita o que restou do que fora um delicioso sanduíche.

Ao me ver assim tão pequenino e indefeso ela exclamou – Que menino magrinho. De imediato me veio à lembrança a história da velha que engordou as criancinhas para comê-las depois. Olhei para traz na expectativa de ver o Junior na porta e correr para perto dele. Que triste constatação àquela, eu havia sido abandonado na arena para o sacrifício. A professora era uma glutona compulsiva, enquanto me tomava à lição, comia e arrotava. Logo compreendi o espanto de minha irmã.

Tudo parecia estar indo muito mal quando o Junior interferiu e me presenteou com uma pilha enorme de gibis do Tio Patinhas e disse, –Se você ler para mim um gibi por dia eu compro outro no dia seguinte – Era tudo muito simples, ou aprendia a ler pelos gibis ou seria lanche para a senhora do arroto. A escolha foi óbvia passei a ler o Tio Patinha para meu mano, enquanto ele ficava sentado em silêncio olhando pro céu. Minha mãe vendo o meu progresso consentiu em tirar-me do reforço, para minha felicidade.

Meu irmão era hippie, fazia cintos de couro, bolsas, sapatos, sandálias, bijuterias, jogava xadrez, tocava violão, cantava numa banda, nunca vi alguém ler tanto como ele, lembro dele na “Livro Sete”, reduto de intelectuais do Recife, discutindo de igual para igual com professores da Faculdade de Direito, Filósofos, Jornalistas, ele tinha a profundidade de um sábio e a serenidade de um mestre. Mas todos diziam que ele era estranho, muito fechado, isolado da família, só entre amigos ele ficava bem.

Eu o conhecia como poucos em nossa casa, sempre fui aquele que observava a tudo em silêncio. Nasci em uma família de quatro filhos, dois casais, fui o que se chama no nordeste de fim de rama, prefiro pensar que fui o último prazer do meu pai, minha mãe me teve aos 40 anos, não fui um filho planejado ou esperado. Simplesmente nasci. Talvez por isso eu até hoje tenha o hábito de ir aos lugares sem ser convidado.

O Junior sempre fez sucesso entre as mulheres, e do alto de sua experiência com o sexo feminino um dia me confidenciou– nunca conte vantagem de ter saído com uma garota, isto não diz respeito a ninguém, é assunto seu e dela. – Confesso que levei muito tempo para compreender o que ele queria dizer.

O tempo e as circunstâncias da vida afastou a todos nós. Cresci e tornei-me homem longe de todos, quando voltei a ter contato com meu irmão ela havia se transformado num monstro. Destruiu tudo o que eu havia construído em minha inocência de menino, meu irmão tornou-se um viciado. Primeiro entrou para o submundo das drogas, foi viciado por muito tempo. Um dia depois de inúmeros apelos e lágrimas de nossa mãe ele decidiu que deixaria as drogas injetáveis. Por incrível que pareça ele conseguiu, sem ajuda de ninguém, simplesmente parou.

Quando ele conseguiu sair das drogas eu voltei a vê-lo com um pouco mais de respeito, afinal para conseguir lutar contra a dependência química sem ajuda profissional é preciso ser alguém de muita fibra. Mas este triunfo durou pouco, acontece que para substituir as injeções de alucinógenos ele enveredou por outro caminho, passou a beber. O que de início parecia não ser tão ruim...

Mas o tempo foi categórico ao mostrar que meu mano nunca mais seria àquela pessoa que eu conhecera na minha infância. Perdi por ele o respeito, amizade, admiração, no fim eu tinha vergonha dele.

Rompemos nossa relação e eu mal falava com ele, nossa mãe dizia que ele era amoroso, carinhoso, tranqüilo e não merecia ser desprezado, eu não conseguia ver nenhuma desses virtudes nele. Talvez eu tenha criado expectativas grandes demais. Talvez eu tenha sido egoísta e presunçoso. O que sei é que me afastei dele o quanto pude. Muitas vezes vi minha mãe correr para socorrê-lo enquanto eu nada fazia. Muitas foram as ocasiões em que eu assistia a tudo em silêncio sem me envolver.

Um dia eu olhei em seus olhos e lhe disse, você quer se matar, então faça logo, mas não leve nossa família junto. Ele parecia decidido a não retornar daquele abismo em que se atirou.

No dia 7 de setembro de 2003, meu irmão faleceu no Hospital da Restauração, vítima do alcoolismo, eu havia socorrido ele na madrugada do dia anterior, e estive com ele todo o tempo. Briguei com os médicos que se negavam a fazer algo para aliviar sua dor. Usei de todos os meios para que ele fosse atendido e que sua situação fosse remediada. Recebi do médico que o examinou a sentença de morte dele – Seu irmão não sobreviverá até o amanhecer do dia.

Por ironia do destino ficamos, eu e ele, diante do médico ouvindo aquela declaração, vi em seus olhos uma tranqüilidade que me comoveu. Ele quis se despedir de todos. Eu me encarreguei de fazê-lo. Deus permitiu que todos tivessem oportunidade de falar com ele. Ele pediu perdão a todos. E teve em seu último momento a solidariedade e respeito de todos nós. Em seu último instante meu irmão voltou a ser meu herói.

Mas isto ele nunca saberá...

1 Comments:

Blogger InfinitLoop said...

Você é que pensa!

A comunicação é wireless!

:o*

12:25 AM  

Postar um comentário

<< Home